Quando saltei no terminal tinha o cansaço de três dias sem dormir, eu era praticamente um zumbi. Só quis pegar a mochila depois que todo mundo abandonou o vagão e, sendo o último a descer, acabei ficando meio perdido na estação. Pensei que tinha saltado no lugar errado e logo me dei conta que tal façanha era impossível, pois eu sempre descera no terminal. Olhei a placa da dianteira do trem – Lagoa do céu – era o mesmo nome brega de sempre, então procurei alguma semelhança com a estação da qual tinha partido cinco anos atrás para começar a faculdade de arquitetura. Sentei em um banco perto do fiteiro.
- Tem fogo?
O fiteiro me fez ouvido de mercador. Foi ai que me dei conta que estava mesmo em Lagoa céu. Não existe povo avarento a ponto de negar-se a acender o cigarro de um visitante fora de Lagoa, imaginei. Por desgosto fiquei na vontade de fumar, andei até o fim da estação dando com uma chuva catastrófica lá fora. Só me restou esperar que as águas daquele quase dilúvio dessem trégua. Eu não tinha pressa, ninguém esperava minha volta tão cedo e eu estava ali como um forasteiro em sua terra natal. Nunca tinha sentido tanta preguiça, mas resolvi sair na chuva mesmo, como se minha teimosia fosse constranger o céu a não chover mais. Parece que por alguma coincidência esquisita aquilo funcionou. Fui em baixo da garoa à pousada de minha mãe e quando despontava na esquina após caminhar seis quadras com sofreguidão, Horácio vinha espalhafatoso, gordo e desengonçado ao meu encontro, chegou até a mijar de alegria e saudade, quando ele chegava perto fechei os olhos imaginando a queda que os dois iam levar na poça atrás de mim, mas o Horácio já era velhinho. Cinco anos pra mim eram cruéis vinte anos pra ele. Quando chegou perto de mim só me cheirou os sapatos e me olhou com o a ternura que só um verdadeiro amigo pode olhar.
Foi só quando tirei o olhar de Horácio que vi a pousada abandonada e com um aspecto penoso. Troquei mais um olhar com meu cão antes de ir de encontro à pousada Maranata, a qual me recebeu calorosamente com a placa caindo sobre meu dedão. Anfitriã idiossincrática como essa eu nunca vi. Entrei com o cuidado de esquadrão antibombas e assoviei a cantiga do pai Francisco que fez com que Horácio me olhasse da porta sem muita disposição para entrar.
- Meu vira-lata velho não é mais o mesmo – Pensei comigo.
Resolvi cantarolar em uma esperança ingênua de que alguém ouviria – “Pai Francisco entrou na roda tocando seu violão... Bi rim rim bão bão... –
Nada respondeu. Quase me convenci de que não havia nenhuma viv’alma além de mim na pousada Maranata quando escutei a voz de minha irmã – “Vem de lá seu delegado e pai Francisco foi para prisão”
Cantei mais alto dando a deixa – “Quando ele vem todo requebrado...”.
Escutei a voz dela embargada – “Parece um boneco se desengonçado”.
Desde qualquer data que me fosse possível lembrar, junto com Adira eu sempre cantava essa música e essa era umas das minhas melhores lembranças. Fui atrás da voz dela e por descuido, quando dobrei no corredor que dava acesso aos quartos, tropecei numa mochila. Esquisito... A mochila era idêntica a minha... Era uma réplica perfeita. Os defeitos, as manchas, tava tudo lá... Aquilo me deixou com todas as pulgas possíveis atrás da orelha. Mas prossegui procurando Adira. Encontrei ela no terceiro lance de escada com os dedos sobre o braile da bíblia que eu tinha lhe dado antes de partir.
- Dazinha!
Duas lágrimas correram dos seus olhos de imediato. Ela fechou com cautela a bíblia abrindo-a novamente na segunda carta de Pedro no capítulo um, no verso quinze lendo em audível som: “Mas também eu procurarei em toda a ocasião que depois da minha morte tenhais lembrança destas coisas”. Gelou-me a espinha de cima a baixo ou o inverso ou tudo de uma vez. Estaria Adira pensando em quê finalmente?
- Mozão, eu cheguei, não ta vendo? – então eu vi que não foi uma piada boa para aquela hora definitivamente. Adira não me respondia. Pensei que ela tivesse esquecido da minha voz. Minha voz tinha mudado nos últimos anos graças ao cigarro, as festas da faculdade, os projetos que entravam pela madrugada, as aulas no grupo de estudo. Um sem fim de coisas, mas será possível que Dazinha não conhecia mais a minha voz? Ela era tímida com estranhos, logo, nunca mostrava os olhos a qualquer um, mas eu gostava dos olhos azulzinhos dela. Na infância eu tinha inveja porque eu não ganhei os olhos do vovô, mas depois vi que não ia me combinar muito mesmo. Conformava-me em fitar os dela quando ela estava desatenta.
Eu queria cutucar-lhe a orelha como ela fazia comigo quando eu ralava o joelho e o queixo bancando o rei da bicicleta. Aquilo era bom demais... Só quem tem uma boa irmã mais velha sabe o que é isso. Mas eu não consegui fazer, algo me impedia. Tudo aquilo era muito sofrido. Resolvi descer mais um lance de escada e rever o quarto em que geralmente eu ficava quando trabalhava até tarde e não podia voltar pra casa. Para minha surpresa o quarto estava tão bem arrumado que parecia não fazer parte daquele lugar. Os livros, as fotos, a escrivaninha com abajur e na escrivaninha uma carta escrita com a minha letra de título: II Pedro 1.15. Faltou-me palavra... Pensar se tornou missão inconcebível. Subi outro lance de escada e minha Dazinha continuava lá com a cara mais vermelha ainda. Fui à porta da entrada e Horácio permanecia lá como um carpete velho ao lado da placa caída ao chão, que dizia: Pousada Maranata. Corri ao quarto e fitei a novamente a carta que tinha por título II Pedro 1.15 sem ousar tocá-la.
- Mas também eu procurarei em toda a ocasião que depois da minha morte tenhais lembrança destas coisas... –
Adira tateou até chegar ao quarto e me olhar com olhos castanhos iguais aos meus. Pensei comigo onde estaria o azul? Mas o mais medonho de tudo era que Adira me encarava. A mim sempre foi impossível que um cego encarasse alguém. Os olhos dela me seguiam aonde quer que eu desviasse o meu olhar. Ela me via. Falou-me com uma voz grave, quase cava.
- De ti me restou tanta saudade... - E coçou a minha orelha. Foi a primeira vez que chorei em cinco anos.
- Por que II Pedro 1.15? – Perguntei com medo da resposta.
- ...
***
Acordei pulando do assento e, antes que do vagão se enxergasse a lagoa do céu, eu já estava de mochila nas costas. Arremessei o cigarro pela janela e fui incomodar o maquinista. É óbvio que fui interceptado, mas bem o trem não parou e eu já saltava elétrico do vagão correndo como louco pela estação. Comprei um pandeiro no fiteiro e sai batucando “Pai Francisco entrou na roda tocando seu violão be rim rim bão bão” Quando vi o dilúvio que descia fora da estação resolvi tomar um banho de chuva dos bons para comemorar a minha chegada e quando ensopado eu terminei de correr as sete quadras que separavam a estação da pousada vi Horácio correndo em minha direção.
- Vira-lata safado!
Ele vinha todo se tremendo e vibrando o cotoco de rabo. Derrubou-me na poça de lama atrás de mim. Lambeu-me até cansar a língua mole e depois saiu correndo de volta pra pousada Maranata latindo mais que três cães. Fui correndo atrás de Horácio em passo um pouco mais lento na medida do possível. E quando subi os degraus da entrada cantado a marcha do pai Francisco a placa da onde se lia: Pousada Maranata me caiu nos calcanhares. Quando me abaixei pra ver os danos que a placa inconveniente tinha causado uma mãozinha cutucou minha orelha.
- Parece um boneco desengonçado!
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